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Mudanças ortográficas: analisando as primeiras consequências

Se você (ainda) sentiu falta de algo neste título, acostume-se de vez com a ideia: o trema caiu. E o acento agudo de “idéia” e outras palavras com ditongo aberto (ei e oi) também desapareceu. Tudo isto é resultado do acordo entre quatro países de língua portuguesa – Brasil, São Tomé e Príncipe, Portugal e Cabo Verde – para unificação da ortografia, que entrou em vigor em janeiro de 2009 e foi incorporado quase que imediatamente pelos veículos e cursos de comunicação social.

A plena adaptação às novas normas, porém, deve demorar mais alguns anos. Basta ver que há pessoas (professores, inclusive) que ainda hoje utilizam o arcaico “estória”, neologismo exclusivamente tupiniquim para a narrativa popular proposto em 1919 por João Ribeiro (imortal da Academia Brasileira de Letras) que nunca figurou na norma culta e que desapareceu inclusive dos dicionários brasileiros há mais de duas décadas, com a plena consolidação do termo história – tente contar nos dedos há quanto tempo você sabe que história em quadrinhos é HQ... Também não conheço pessoas que falem ou escrevam “contacto”, mas quase todas com que me relaciono diariamente fazem uso da forma verbal “contactar”.

Creio que estes errinhos que permanecem entre nós não sejam puramente uma resistência à mudança. As escolas e os livros didáticos se adaptaram em menos de um ano, os veículos de comunicação impressa – com seus manuais de redação – o fizeram em prazo menor ainda. A imprensa, aliás, teve e continua tendo um importantíssimo papel na divulgação da nova grafia. A questão é como fazer que estas mudanças cheguem a uma maioria de brasileiros que não mais frequenta (sem trema) a escola, nem tem o hábito da boa leitura.

Três exemplos simples podem comprovar a afirmação acima. Pergunte a seus amigos quantos são os estados físicos da matéria, ou a qual sistema corporal pertence o estômago, ou ainda qual o horário seguro para se tomar sol. Tal como aconteceu quando fiz a experiência, tenho certeza que quase todos responderão à primeira pergunta sólido, líquido e gasoso; sistema digestivo à segunda questão; e que é totalmente seguro ficar exposto ao sol antes das 10h e após as 16h. Porém, nos últimos anos foram reconhecidos mais três estados físicos: plasma, condensado de Bose-Einsten e condensado fermiônico (é preciso registrar que alguns físicos discordam do nome deste último estado, mas não da existência do mesmo). O tal sistema “digestivo” agora é chamado sistema digestório. E o buraco na camada de ozônio fez que os cancerígenos raios ultravioleta B (UVB) hoje incidam com maior intensidade das 9h30 às 16h30. Coisa que só se aprende na escola, ou em publicações especializadas.

Apenas neste século XXI, a tabela periódica ganhou diversos novos elementos, o sistema solar perdeu um planeta, foram descobertas novas espécies vivas de animais e também de dinossauros fossilizados, novos países surgiram. O mundo todo está em mudança permanente, mas a capacidade de lidar com tantas informações ainda é limitada – seja porque um grande número de pessoas não tem acesso a estas novidades, seja porque outras têm que lidar com um volume cada vez maior de informação, diariamente, que chega por rádio, TV, jornal, revista, sites, e-mails, memorandos ou mesmo nas conversas e na mídia dos elevadores.

Por isso, resultados mais abrangentes estão descartados, por enquanto. Ainda levará um tempinho para que a maioria da população não ache tão estranho escrever e ler ultrassom e contrarregra (sem hífen e com a consoante duplicada), creem e enjoo (sem acento), jiboia e feiura (também sem acento) ou ainda cinquenta e linguiça (sem trema), assim como hoje consideramos absurdo pharmácia ou óptimo (forma até há pouco tempo vigente em Portugal e que também foi modificada com a reforma ortográfica).

As mudanças que atingiram menos de 2% de nosso vocabulário já têm evitado problemas como duplicação de documentos em acordos bilaterais entre Brasil e Portugal, até 2008 redigidos em “português do Brasil” e “português de Portugal”, ou a necessidade de se “traduzir” livros lançados em terras lusitanas para o leitor brasileiro – e vice-versa. Quanto às gírias, termos e sotaques característicos, bem como as piadinhas de ambas as partes, “cá comigo, ó pá, sabe-me bem” que estes nenhuma reforma conseguirá mudar...


AJ Chaves é jornalista e mestre em Ciência da Informação.

Artigo redigido em janeiro de 2010.
Permitida a reprodução, desde que com a citação de autor e fonte.

Crédito da imagem acima: produzida por alunos do Colégio Estadual Dario Vellozo (PR).